Um paralelo entre os governos de FHC e de Lula

Muitos dos integrantes e partidários do atual governo manifestam-se como se tudo o que ocorre de bom no País tivesse começado com ele, e que antes nada prestava, sendo uma prova disso a demolição do relógio dos 500 anos em Porto Alegre, no ano de 2000, sob a alegação de que não havia nada a comemorar no Brasil.

Muitos feitos de nossos antepassados poderiam ser referidos para mostrar que o Brasil motivo de nosso orgulho vem de antes e não só o Brasil das mazelas e da corrupção. A Petrobrás e o Pró-álcool, dois dos maiores motivos de ufanismo do governo atual, foram criados, respectivamente, nas décadas de 50 e de 70.

Foi pensando nisso que resolvi escrever este texto, fazendo justiça a um governo que foi muito criticado, porque sua principal missão acabou sendo a de preparar as condições necessárias para as ações de seu sucessor.

O Governo Lula continuou e até aprofundou os fundamentos básicos da economia que vieram do governo anterior, como o superávit primário, o câmbio flutuante e as metas de inflação.

Quanto ao superávit primário, que é a poupança formada para pagar os juros da dívida, na época do Governo Fernando Henrique era combatido pelos apoiadores do governo atual, sob a alegação de que ele destinava-se a enriquecer ainda mais os banqueiros. E, por paradoxal que pareça, no período do Presidente Lula foi dobrado o valor formado para esse fim pelo Governo Central, quando passou de 1,3% para 2,4% do PIB.

E isso não foi feito em benefício dos banqueiros, mas do próprio País, que assim reduziu a dívida de 51,3% do PIB em 2002 para 43,1% em junho do corrente ano. Essa redução tornou o País mais atraente para os capitais externos, tendo conseguido o denominado “investment grade”, de que o atual governo tanto se orgulha. E o responsável por essa política, antes tão criticada, está sendo cotado para ser o vice na chapa oficial para a presidência da República na próxima eleição.
A política cambial possibilitou a formação de grandes saldos comerciais, a partir de 2001, ainda no governo de FHC, depois de um longo período de déficits, entre 1995 e 2000. Esses saldos comerciais foram favorecidos pelo grande crescimento da economia mundial, que alcançou uma taxa média de 4,2% entre 2003 e 2009, estando estimada em 3,1% a taxa do último ano.
O período FHC, ao contrário do atual, coincidiu com inúmeras crises internacionais, sendo a do México (1995), a asiática (1997-98), a russa (1998-99) e a argentina (2001), além do atentado às torres gêmeas, em 2001.

Além disso, ocorreu o “apagão”, esse sim um fato nacional, com origem no regime desigual de chuvas no País, somado a uma insuficiente rede de distribuição de energia elétrica.
Em 2002, com a possível vitória de Lula, que acabou se concretizando, os investidores externos, temendo que ele colocasse em prática os discursos feitos ao longo do tempo, propiciaram uma fuga de capitais, o que elevou a cotação do dólar para R$ 4,00 e com grande crescimento da taxa de juros. A inflação passou de 7,7% no ano anterior, para 12,5%, quando medida pelo IPCA, tendo alcançado 26,4%, quando calculada pelo IGP-DI.

Em função dessas crises e da ausência de um superávit primário mais consistente, a economia era mais vulnerável, o que levou o Brasil a pedir socorro ao FMI em mais de uma oportunidade.
O superávit primário começou a ser formado no segundo período de FHC, o que só foi possível com o aumento da carga tributária, que serviu para atender também as inúmeras benesses criadas pela Constituição de 1988, que gradativamente foram sendo colocadas em prática.
Além disso, a queda da inflação, de uma taxa anual de 2.500% (31% ao mês) em 1993, para 22% ao ano em 1995 e 1,7% em 1998, produziu profundas mudanças nas finanças públicas, reduzindo drasticamente a receita financeira e aumentando, com a mesma intensidade, a despesa real.
O resultado disso tudo foi o aumento da carga tributária, que, medida pelos novos critérios, passou de 26,9% do PIB em 1995 para 32,4% em 2002, continuando sua expansão daí em diante, alcançando 35,8% em 2008. E só não atingiu 40% pelos critérios anteriores, porque a nova metodologia, concebida com mais peso nos serviços, a reduziu em torno de quatro pontos percentuais do PIB.

A comparação entre os dois períodos pode-se dizer que é praticamente impossível, por que os cenários foram absolutamente diferentes. O primeiro eivado de crises internacionais e o segundo, de crescimento quase sem precedentes na economia mundial, com exceção de 2009, cuja crise o governo atual enfrentou satisfatoriamente, porque vinha de uma situação favorável.
Fazendo-se uma analogia, é como se duas lavouras de igual tamanho fossem plantadas. A primeira delas cheia de inços e com condições atmosféricas adversas, e a segunda, já sem os inços e em condições atmosféricas favoráveis. Na analogia feita, os inços são os inúmeros entraves da legislação, que foram retirados no primeiro governo em causa, e a condições atmosféricas é a economia global onde o País está inserido.

Apesar da grande oposição existente à época, na verdade, foram as reformas, denominadas de neoliberais, acompanhadas de um cenário externo favorável e da manutenção e do aprofundamento de uma política criada anteriormente que permitiram que o País esteja hoje na situação em que se encontra.
Para não passar em brancas nuvens, apesar dessa enorme carga tributária em que quase 60% fica com a União (20,1% do PIB), os investimentos do Governo Central atingem menos de 1% do PIB, e o superávit primário formado dá para pagar pouco mais da metade dos juros devidos, restando a outra metade para ser incorporada ao estoque da dívida.
Em 2009, a situação piorou, porque ao lado de uma queda real da arrecadação, de 5,4%, a despesa cresceu 10,3%, tendo os gastos com pessoal crescido 13,3%, tudo em termos reais, comparando-se o período de janeiro a agosto do exercício atual com igual período do ano anterior. O superávit primário do Governo Central caiu 70%, passando de 3,9% para 1,2% do PIB.

As principais modificações feitas pelo Governo FHC que propiciaram uma melhora na situação atual foram a privatização de estatais, o que contribuiu para reduzir o déficit público; o fim dos monopólios estatais nos setores de energia e telecomunicações, para o que o setor público não dispunha de recursos para investir; as mudanças quanto ao conceito de capital estrangeiro e o saneamento do sistema financeiro por intermédio dos programas PROES (bancos públicos) e PROER (bancos privados). Esse último fato explica em grande parte o desempenho brasileiro diante da crise atual.

Foi no Governo FHC que começou a reforma da previdência, que estabeleceu, entre outras coisas, a idade mínima para a aposentadoria no setor público aos 53 anos para o homem e aos 48 anos para as mulheres, pelo que foi muito criticado pela oposição da época. O Governo Lula manteve a mudança e, ainda, estabeleceu o desconto de até 35% nos proventos. O desconto em causa não está errado. O problema está é na coerência.

Outra realização importante foi a Lei de Responsabilidade Fiscal, que criou limites para a despesa de pessoal e endividamento, além de uma série de outros procedimentos que favoreceram o tão necessário ajuste fiscal em todos os níveis de governo.
Essa lei trouxe uma série de modificações no relacionamento com os demais entes federados. Ela mais outra importante medida, a renegociação das dívidas estaduais, retiraram uma série de prerrogativas que os estados detinham e que impediam o ajuste macroeconômico, como a emissão de títulos da dívida pública e o financiamento de seus déficits pelos próprios bancos estaduais, obrigando-os, ainda, a fazer ajustes fiscais, com a geração correspondente de resultados primários. Além disso, os estados foram compelidos a vender empresas estatais deficitárias, possibilitado a redução dos gastos públicos.

Na realidade, as políticas sociais do governo Lula são mais abrangentes, para o que a situação econômica e financeira do País é mais favorável. A própria bolsa família é uma unificação e ampliação de políticas sociais anteriores, como bolsa-escola, bolsa-renda e vale-gás. O Programa Luz para Todos é uma ampliação sob outra denominação do Programa Luz no Campo.
O salário mínimo, que cresceu 125% entre 1994 e 2009, teve um crescimento de 45% nos oito anos de FHC (4,7% reais aa.) e de 55% nos sete anos de Lula (6,4% aa). Ver gráfico no início.

As inúmeras privatizações ocorridas no Governo FHC não retiraram o controle governamental, que passou a ser feito pelas agências reguladoras que foram criadas. O sistema ideal é aquele que alia a capacidade produtiva da empresa com políticas sociais que permitam uma melhor distribuição da renda. A primeira é uma função do mercado e a segunda, do estado. Por isso, estado e mercado são instituições diferentes sem ser antagônicas, porque são complementares.
Na opinião pública, as coisas são vistas pelo resultado presente. Sob essa ótica, quando existem coisas boas, o responsável será o governo do momento, porque o resultado da plantação não está na preparação da terra, nem na sua semeadura, mas nos grãos ou nos frutos colhidos. E ninguém questiona quanto e como seria a colheita na hipótese de uma terra mal preparada.

Os governos, como muitas obras humanas, só podem ser avaliados verdadeiramente pela história, quando os que deles participaram não estão mais presentes e os interesses envolvidos são outros. Por tudo isso, somente a história fará o julgamento da participação de cada governo em tudo o que feito nos últimos anos. E nesse “tudo” estão incluídas as coisas ruins. Quem viver verá.

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