Contabilidade criativa no Brasil
Nos últimos tempos tem sido praticada uma série de ações que pode colocar em risco o equilíbrio macroeconômico_ conseguido a alto custo pelo Plano Real_ e os fundamentos da Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso se convencionou chamar de contabilidade criativa, que é uma manobra fiscal visando a mascarar o cumprimento de metas ou o resultado fiscal do ente público.
A contabilidade criativa não cria recursos, portanto, não atinge a finalidade, apenas mascara a situação, substituindo o fato pela versão. É como o mau aluno que, na prova, substitui o saber pela cola. Passa de ano, mas não se prepara para a vida.
As lacunas na Lei de Responsabilidade Fiscal e o afrouxamento da fiscalização dos Tribunais de Contas deixam de disciplinar o uso de algumas práticas que afetam a transparência das contas públicas, como o uso de empresas não dependentes e a utilização de recursos vinculados através do caixa único para financiar despesas correntes da Administração Direta.
A contabilidade criativa ganhou uma dimensão nacional e internacional devido as constantes críticas que o Ministério da Fazenda e o Tesouro Nacional vêm sofrendo por alterar o resultado primário do governo central. A conhecida economista Tereza Ter-Minassian enumerou três procedimentos de contabilidade criativa adotados pelo Governo Federal: (i) retirada de investimentos públicos do Programa de Aceleração do Crescimento e benefícios fiscais do cômputo do resultado primário; (ii) a antecipação de dividendos de empresas e bancos federais e de vendas de direitos de exploração de petróleo do pré-sal nos cálculos; (iii) empréstimos concedidos pelo Tesouro Nacional ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e à Caixa Econômica Federal como estímulo ao crescimento econômico.
Podemos citar alguns exemplos dessa prática, começando pela capitalização da Petrobras em 2010, quando foram utilizados para engordar o superávit primário R$ 31,9 bilhões, elevando-o de 1,3% para 2,2% do PIB. Esse recurso teve origem na venda de um petróleo que está a 7 mil metros de profundidade, mediante uma engenharia financeira, que foi baseada em lançamento de títulos da dívida pública.
No que tange aos empréstimos concedidos pelo Tesouro Nacional ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e à Caixa Econômica Federal desde 2009, têm sido justificados como meio de impulsionar o consumo e os investimentos.
A emissão de títulos públicos para injetar mais dinheiro nos bancos estatais não afeta a dívida líquida, porque o crédito correspondente neles gerados é deduzido da dívida bruta, embora tenham uma liquidez muito menor do que as operações da dívida que lhe deram origem. O repasse de recursos aos bancos públicos, segundo Gustavo Loyola, passou de R$ 14 bilhões no final de 2007 (0,5% do PIB) para R$ 406 bilhões no final de 2012 (9,2% do PIB).
Grande parte desses recursos é utilizada pelos bancos oficiais em empréstimos a grandes empresas brasileiras, denominadas “campeões nacionais”, que adquirem outras do mesmo setor, formando monopólios em prejuízo do consumidor.
O diferencial dos juros entre o custo de captação e o valor recebido do BNDES constitui um subsídio implícito bancado pelo Tesouro Nacional e será suportado pelo contribuinte mediante o pagamento de impostos. Segundo Ribamar Oliveira, montante do subsídio implícito passará de R$ 11,31 bilhões no corrente exercício para R$ 15,67 bilhões em 2014 (Valor Econômico, 7/11/2013).
O valor do subsídio não é lançado na contabilidade pública. Paradoxalmente, os dividendos gerados por esses empréstimos nos bancos públicos são transferidos ao Tesouro Nacional para melhorar a meta de resultado primário do governo central.
Essas operações reproduzem a chamada conta movimento existente na época do regime militar em que toda necessidade de recursos era suprida mediante transferência do Banco Central ao Banco do Brasil, vindo tais recursos da dívida pública. A conta movimento, uma verdadeira “fábrica” de inflação, foi extinta em 1986, mas suas práticas foram retomadas pelo atual governo.
No âmbito dos entes subnacionais, a “criatividade” dos gestores públicos não conseguiu ser refreada pela LRF. Por exemplo, o Estado do Rio Grande do Sul possui uma dívida paralela que começou em 1999, que são os saques do caixa único, que engloba recursos vinculados pela Constituição e por leis, recursos de fundos especiais, de empresas estatais e depósitos judiciais, importando estes últimos em R$ 6,5 bilhões, dos quais R$ 4,5 foram sacados no atual governo. Utilizados no custeio de gastos correntes, isso se generalizou entre os estados e capitais brasileiros, como se esse dinheiro lhes pertencesse.
A mudança na dívida, que poderia ser um alívio para as finanças estaduais, poderá ser uma faca de dois gumes, ao abrir espaço para mais endividamento, aumentando seu custo, uma das grandes queixas dos estados. Ainda nem votada a lei que a aprovará, o Governo Federal já autorizou a contratação de mais R$ 89 bilhões de dívida para os estados.
O Estado do RS, por exemplo, foi contemplado com RS 2,6 bilhões, e só tem margem para endividamento porque a regulamentação feita pela STN vem contra ao espírito da LRF, ao mandar colocar apenas um traço no local destinado às disponibilidades, quando negativas, denominando-as de insuficiências financeiras, que são de R$ 3,6 bilhões. É como se alguém não incluísse nas suas dívidas o saque a descoberto do cheque especial. Trata-se de uma prática antiga que foi mantida no Manual de Demonstrativos Fiscais válido para 2013, 5ª edição – STN, aprovado pela Portaria n° 37 de 18/10/2012, p. 552.
Outro aspecto, que não se trata propriamente de contabilidade criativa, mas é uma afronta à LRF, são as concessões de altos reajustes salariais de forma parcelada a serem pagos em todo o período governamental seguinte, inviabilizando-o, como é o caso do RS.
Os fundamentos da LRF e a disciplina fiscal vêm sendo solapados em nome de um keynesianismo tropical, que tem trazido insegurança e dúvidas quanto à condução da política econômica do Brasil. Se não colocarmos um freio nessas práticas, seja na órbita federal e subnacional, as altas taxas de inflação muito breve estarão de volta e o endividamento subnacional estará descontrolado.
A corrupção, embora abominável e generalizada, não é o maior problema brasileiro, e sim a irresponsabilidade fiscal. A primeira leva os milhões, e a segunda os bilhões!