A dívida estadual e a matemática financeira: Uma demonstração técnica
1) Matemática Financeira e condições essenciais
Tinha prometido a mim mesmo que não entraria mais nesse assunto da dívida do Estado, em que sou acusado de ser o único que assim pensa, porque se trata de uma dívida impagável. Não duvido dessa hipótese, pelas razões expostas ao longo do texto. No entanto, quando se trata da operação de empréstimo em si, o acordo seria plenamente viável. Não tenho a pretensão de duvidar dos resultados apurados em diversos trabalho que fazem uso de sofisticadas equações, mas tenho a convicção que a Matemática Financeira é suficiente para fazer essa comprovação, desde que haja superávit primário.
Entendo que a possiblidade de pagamento da dívida pode ser demonstrada pela Matemática Financeira, sendo, no entanto, exigidas duas condições essenciais para tal, sendo uma da própria Matemática Financeira, que é o pagamento integral das prestações calculadas, evitando o absurdo que foi feito no contrato original de 1998, de pagar um limite em função da receita líquida real. Isso gerava excedentes que se acumulavam ao saldo devedor, incidindo novamente juros (anatocismo) e correção, o que tornou impagável a dívida. O mesmo que ocorrera no passado com o antigo BNH, que reajustava o saldo devedor pela correção monetária (com periodicidade trimestral) e as prestações pela equivalência salarial, esta menor e com periodicidade anual.
A outra condição é do campo da Finanças Públicas, que a do superávit primário. Sem ele não há como pagar a dívida. Aliás, isso ocorre na nossa própria vida privada. Se contrairmos uma dívida, temos que gerar no nosso salário mensal um excedente para pagar a prestação. Isso equivale ao que no setor público se denomina superávit primário. Para apurar-se resultado primário precisamos de receita e de despesa menor que ela, na dimensão necessária para tal. E a receita precisa ser permanente, recorrente. Fora disso a dívida torna-se impagável.
Plano de amortização
Quando contraímos uma dívida, com base nas condições estabelecidas, como valor do empréstimo, taxa de juros, período (tempo), sistema de amortização, calculamos a prestação. A partir daí, construímos o Plano de Amortização (Tabela 1). No caso, hipotético.
O Sistema Price é uma aplicação do Sistema Francês de Amortização, só que com capitalização em período diferente daquele a que se refere a taxa nominal. Geralmente a taxa nominal é anual com capitalização mensal, que é o caso do contrato da dívida estadual. Com base nessa taxa, calculamos a prestação, que é fixa para todo o período contratual. Daí já se depreende que, sendo a receita crescente, com o decorrer do tempo ela (a prestação) cada vez comprometerá uma parcela menor da receita. O cálculo da prestação pode ser feito pela fórmula FRC – Fator de Recuperação da Capital, existente em qualquer livro de Matemática Financeira. Mas existe uma maneira mais fácil de apurar a prestação, que é através da calculadora HP-12C, que a adotamos para a situação em causa.
Um empréstimo hipotético
Tomamos um valor hipotético, pela dificuldade de obtermos os dados reais. No entanto, é o suficiente para demonstrarmos o que queremos, porque a lógica é a mesma. Por outro lado, ficaria difícil colocar um plano de 360 períodos neste espaço. Ademais, um plano de amortização pode ser visto em qualquer livro de Matemática Financeira.
Fizemos uma hipótese de um empréstimo de R$ 100.000, para ser amortizado em 30 anos, taxa nominal de juros de 4% por ano, que equivale a uma taxa efetiva anual de 4,0742%, decorrente da capitalização mensal da taxa de 0,00333 (0,04/12) ou seja [(1+0,04/12)12 -1].
Da prestação calculada, parte é destinada ao pagamento dos juros e parte à amortização, que são parcelas complementares, sendo os juros decrescentes e as amortizações, crescentes. Os juros decrescem a cada período transcorrido, porque incidem sobre o saldo devedor que é decrescente a cada amortização, que, por sua vez, cresce à medida que os juros decrescem.
Com isso, os juros variam de R$ 4.060,20 a R$ 228,44, primeira e última parcela, respectivamente. Em decorrência, a parcela da amortização varia de R$ 1.761,02 a R$ 5.606,78, primeira e última parcela, respectivamente. Com isso, tomando por hipótese uma RCL de R$ 60.000, a prestação corresponderá a 9,7% no primeiro ano, descendo gradativamente até alcançar 5,5% no trigésimo ano, tomando também por hipótese um crescimento real da RCL de 2% ao ano.
E, por derradeiro, podemos dizer que a taxa geométrica média de juros em todo o período é de apenas 1,88%. A taxa de juros é raiz 30 da razão 175.056.60 e R$ 100.000,00. A taxa efetiva de 4,0742%, mas incide sobre o saldo devedor integral somente na primeira prestação, após a incidência é sobre o saldo residual (TG = [(175.066,60/100.000,00) (1/30) – 1) x100]
Concluindo, podemos dizer que pagando integralmente todas a prestações constantes do Pano de Amortização, o empréstimo será zerado. Se, no entanto, ficarem sem pagar partes das prestações, a dívida nunca será zerada e, ainda, o saldo devedor será aumentado pela reincidência dos juros.
2) Então, porque o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) precisa ser revisto tão precocemente?
Numa cartilha que escrevi recentemente, denominada “Como a vaca foi pro brejo”, p. 54 e 55, já advertia que a prestação da dívida ficaria muito alta na década de 2030 e já apontava a queda de arrecadação decorrente da redução das alíquotas do ICMS de 25% para 17% incidente sobre combustíveis, energia elétrica e telefonia. Só não foi considerada, porque ainda não havia ocorrido, a queda de 45,6% na produção agropecuária no ano de 2022, com alto reflexo na arrecadação, pelo efeito sistêmico da produção agrícola nos demais setores da economia, na indústria, nos serviços, no comércio, e na renda do produtor.
No tocante às secas, os governos precisam tomar medidas tendentes a reduzir seus efeitos, porque elas se repetem costumeiramente no Estado do RS. Em 2005, por exemplo, uma grande seca causou a queda de 26,8% na mesma produção agrícola e de 2,7% no PIB-RS, o que levou o governo a aumentar as alíquotas do ICMS dos produtos citados de 25% para 30%, alíquotas essas que só voltaram ao normal em janeiro de 2007. A partir de 2016 tiveram novo aumento nas mesmas dimensões, mas por outras razões, voltando ao normal em janeiro de 2022. Também a alíquota geral, que estava em 17,5%, voltou a ser de 17%.
Também a inclusão da dívida com credores multilaterais na negociação foi o grande equívoco do acordo. Além disso, contribuiu para o aumento do saldo devedor os cinco anos de prestações não pagas, amparadas por liminar, de julho/2017 a junho/2022 e mais o parcelamento das prestações na razão de 1/9 ao ano, até integralizá-las nove anos após. Tudo isso soma 10 anos, sendo 5 anos de atraso, mais 5 do parcelamento (Cartilha citada, p.56).
Mas não foi só isso. Nas receitas de transferências, nosso Estado ficou no último lugar, em decorrência da alteração no índice do Fundo de Participação do Estados – FPE, pela LC n 143/2013, que reduziu nossa já reduzida participação de 2,35% parar 1,52%, e com critérios adicionais que fizeram baixar ainda mais a cada ano, culminando com um índice de 1,32% em 2022, com uma perda de arrecadação, de R$ 2,5 bilhões no ano nesse ano em relação a 2015.
2.1) SELIC, taxa de juros e CAM
A Tabela 2 mostra que os reajustes foram favorecidos pela Selic no período 2017-2021 e somente em 2022, ela cresceu acima do IPCA+4 e do CAM+4. A Selic está alta e continuará por algum tempo, o que não traria problema, se ela fosse tomada como limite pelo valor mensal.
Como a comparação não são com valores mensais estanques, mas com valores acumulados dos índices citados, conforme § 2°, do art. 2° da LC 148/2014 e do decreto 8.616/2015, o que, em nosso entender, é contraditório e injusto. Pela importância do assunto, resolvemos tratar do mesmo em texto próprio, que será publicado em breve.
Tabela 2. Atualização do saldo devedor da dívida estadual
2.2) Taxa de juros
Por mais que aumente a taxa de juros, isso não influi no acordo, porque ela é previamente estabelecida e fixada no acordo. O que importa é se a prestação dela resultante cabe dentro da receita. Tudo deve ocorrer de acordo com o Plano de Amortização.
2.3) Inflação e receita corrente
A dimensão da inflação também não influi no acordo, desde que ela se reflita no crescimento nominal da receita, o que não ocorreu em 2022, pelas ocorrências citadas neste texto. Por isso, a debacle.
O crescimento da RCL foi de 3,8% no período 1999-2019 (20 anos) e de 3,5% no período 2004-2019 (15 anos), (Cartilha, p. 84). Já em 2022 houve um decréscimo de 8,2%, portanto, 11,7% menor que a média dos últimos 15 anos.
Faço todas essas considerações técnicas, sem entrar no mérito se houve culpa ou não do atual governo, apenas para mostrar que diante de tudo isso, o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) não podia dar certo.
Porto Alegre, 17 de julho de 2023.
REFERÊNCIAS:
Estado do RS. Relatório da Dívida 2022, p. 35.
Taxas Selic e IPCA
Disponível em: http://www.ipeadata.gov.br/Default.aspx.
SANTOS; Darcy Francisco Carvalho dos.
Revisão precoce do Regime de Recuperação Fiscal – Uma tragédia anunciada. Disponível em: http://financasrs.com.br/2023/06/19/revisao-precoce-do-regime-de-recuperacao-fiscal-rrf-uma-tragedia-anunciada/.
Influência da arrecadação do ICMS da redução das alíquotas do ICMS no RS e demais estados, em 2022
Disponível em: http://financasrs.com.br/2023/06/26/influencia-na-arrecadacao-da-reducao-das-aliquotas-do-icms-no-rs-e-demais-estados-em-2022/#respond.
Como a vaca foi pro brejo – Cartilha
Disponível em: http://financasrs.com.br/livros-darcy-francisco/.
SOBRINHO: José Dutra Vieira. Matemática Financeira, 6ª edição.
Editora Atlas. São Paulo, 1997. P. 83 e 220.