O mito da concentração tributária na União

Entrevista concedida ao Corecon, realizada no dia 25/01/2021. Confira aqui.

O Brasil sai totalmente quebrado dessa pandemia?

O Brasil já vinha em recessão desde 2014, quando o PIB cresceu apenas 0,5%. Caiu mais de 7% no biênio 2015-2016, crescendo pouco mais de 1% em médiano triênio 2017-2019, fruto de erros na condução da política econômica. Em 2020, quando era esperada uma recuperação da economia, surgiu a covid-19, que provocará, segundo o Boletim Focus do Bacen, uma queda de 4,6% no PIB. O crescimento previsto pela mesma fonte para 2021, de 3,3%, não será suficiente para compensar a queda ocorrida.O passado não é o que passou, mas o que fica do que passou, como dissera Alceu Amoroso Lima. E o que ficou foram grandes déficits, altos índices de desemprego e uma enorme dívida (DBGG), que, em termos brutos, passou de 51% do PIB, em 2013, para 75,8%, em 2019, e 88%, em novembro de 2020. E só não se aproximou de 100%, devido à taxa Selic, de apenas 2%, a mais baixa da história. Em termos absolutos, seu valor já passa de R$ 6,5 trilhões.

Quanto representa os gastos primários do governo federal em relação ao PIB brasileiro?

O resultado primário em 2013 era positivo, de 1,7% do PIB, e o nominal, quando se incluem os juros da dívida, era negativo, de -3% do PIB. Em 2016, o primário foi negativo, de -2,5%, tendo o nominal alcançado -9%. A economia do país começou a se recuperar em 2017, tendo reduzido o déficit primário para -0,9% e o nominal para -5,9% do PIB em 2019. No entanto, em 2020, a pandemia do coronavírus aprofundou essa crise, elevando o déficit primário para mais de 9% do PIB e o nominal para 14%, em 12 meses, apurados até outubro, em torno de R$ 1 trilhão. Colocando todos os algarismos envolvidos, temos uma ideia dessa cifra, que é de R$ 1.000.000.000.000,00, para apenas um exercício.

Como está distribuída a carga tributária nacional entre a União, estados e municípios?

É importante lembrar que há muita confusão entre arrecadação direta e receita disponível, sendo esta última o que fica com cada ente federado, após às redistribuições. Essa confusão foi provocada pela própria Receita Federal que, de alguns anos para cá, deixou de apresentar a última informação. Por isso, muita gente pensa que a arrecadação inicial é a que fica com cada ente. Então, buscamos em outra fonte, essa informação, que apresenta a carga tributária um pouco maior, de 35,07% do PIB, para 2018, sendo a arrecadação direta da União 65,7% do total, a dos Estados, 27,2% e a dos Municípios, 7,2%. Da receita disponível, coube à União 54,8% do total, aos Estados, 25,2% e aos Municípios, 20%. Então, os grandes beneficiários foram os Municípios, que, em 1960, detinham 4,6% do total da receita disponível. Na época, a União detinha 63,8% e os Estados, 31,6% desse total.

Por que os municípios se queixam tanto por falta de repasse de recursos?

Sobre esse assunto, a professora Mariza Abreu, especializada no assunto, afirma que ocorreu foi um aumento de atribuições dos municípios. No tocante à educação, ficou a cargo deles a educação infantil (creche e pré-escola) e ensino fundamental, compartilhado com os estados respectivos. Isso inclui educação especial e educação de jovens e adultos. A creche é a etapa mais cara, pois é a única em que predomina o tempo integral, tem menos crianças por professor ou adulto e precisa de mais equipamentos e alimentação. As matrículas municipais são predominantes na zona rural, onde, além de existir a despesa com transporte escolar, ainda há menos alunos por professor. Na saúde, os municípios são responsáveis pela atenção básica e a assistência social, assumindo, ainda, responsabilidades com infra-estrutura urbana, como, por exemplo, limpeza urbana.

O senhor escreveu artigo sobre a estrutura da carga tributária, publicado recentemente no Jornal do Comércio, onde informa que só restam 15% de recursos para a União. Como se explica isso, se o que se ouve é que a União é que concentra os recursos?

A carga tributária nacional, segundo a Receita Federal, foi de R$ 2.291.407,08 milhões, ou simplesmente R$ 2,291 trilhões. Desse total, é arrecadado pela União R$ 1.547,4 bilhões, ou 67,5%. No entanto, mais da metade desse valor, ou 35%, pertence à Seguridade Social, o que ainda é insuficiente para atender suas finalidades, que são cobertas por recursos complementares do Tesouro Nacional. Se retirarmos 5,5% do FGTS e 0,9% do Sistema “S”, mais as transferências aos estados e municípios, na ordem de 11,2%, restam R$ 342,8 milhões, ou 15%, de acordo com o Boletim do Tesouro Nacional.

E esse endividamento tem sido crescente?

Sim. E outra forma de demonstrar isso é comparar com a receita líquida do Governo Central, em que 80% são despendidos com seguridade social (previdência, saúde e assistência social). Acrescendo 5% de vinculação à MDE ( educação), temos 85%, restando 15% para todas as demais finalidades, compostas por 37 ministérios e órgãos especiais. Como não restam recursos para fazer superávit primário, o resultado é o endividamento alto e crescente. E isso se agravou com a queda do PIB, em que o atual é igual ao de 10 anos atrás, reduzindo a arrecadação e potencializando um problema que vem sendo denunciado há anos por alguns economistas, em especial, por Fábio Giambiagi, que é o crescimento contínuo dos gastos primários em proporção do PIB. Eles passaram de 13,7% em 1991 para 23,8% em 2019, num incremento anual de mais de 0,30 pontos percentuais. Isso é como caminhar numa grama, onde, primeiro forma uma simples marca, depois um rastro e, por fim, uma vala.

Por que a carga tributária brasileira é alta, mal distribuída e insuficiente para atender a todas as demandas da sociedade?

Segundo a Receita Federal do Brasil (Carga Tributária 2018), a carga tributária do Brasil em 2017 era de 32,3% do PIB, 42% ou 9,5 pontos percentuais acima da média da América Latina e Caribe. Segundo a OCDE (2016), o Brasil, na América Latina, fica apenas abaixo de Cuba no tamanho da carga tributária e um pouco acima da Argentina. Por isso, podemos dizer que a carga é alta. Ela é mal distribuída quanto à sua base de incidência, porque 73,5% têm origem na folha de salários e serviços, 24,9% na renda e propriedade, e apenas 1,6% nas transações financeiras. E a carga é insuficiente pelas razões citadas anteriormente. A seguridade absorve 80% da arrecadação, sem que, com isso, seja paga uma aposentadoria satisfatória para a maioria e se faça um atendimento adequado na saúde e na assistência social.

O que falta para resolver esse problema?

Para sair dessa crise, precisa acabar com esse desequilíbrio entre receita e despesa, em favor da primeira. Para a receita, as duas principais medidas são a redução das desonerações tributárias, que atualmente estão em 4% do PIB (1,8% em 2002 e 4,4% em 2015), em torno de R$ 300 bilhões. A outra medida é o aumento da arrecadação, que deve advir do crescimento econômico, mas dificilmente nos livraremos de algum aumento de tributo. O crescimento econômico, com o esgotamento da expansão populacional, deve ser buscado na produtividade, que exige mais equipamentos produtivos – o que implica mais poupança – e melhora na educação. É preciso que cada ente federado procure resolver seus próprios problemas, parando de passar para a União o resultado negativo de suas gastanças, ou dá má gestão de seus entes federados.

Cada um tem que fazer a sua parte, reduzindo despesas?

Sim. Todo o setor público precisa reduzir despesas, diminuindo substancialmente seu incremento anual, que deverá ser limitado à expansão do PIB, cujo crescimento potencial do Brasil é muito baixo. Nos últimos 18 anos, entre 2001-2018, o PIB brasileiro cresceu a uma taxa média de 2,3% ao ano, decorrendo 1,3% da produtividade e 1% do aumento da população, cujo crescimento deve cessar na década de 2040, decrescendo para 0,5% na década 2030-2040, parando de crescer em 2042, segundo o IBGE. Então, em futuro próximo, só nos restará o aumento da produtividade dos fatores, que há vários anos é muito baixa. Precisa também acabar com essa falsa crença de que os recursos estão concentrados na União, porque isso leva a sucessivas reivindicações por parte dos demais entes federados, aumentando cada vez mais os déficits do governo federal e o consequente endividamento. Continuando assim, em breve, entraremos numa situação de dominância fiscal, momento em que a crise fiscal, refletida especialmente na dimensão da dívida pública, limita a ação do governo no tocante ao uso da política monetária para controlar a inflação. Nesse caso a majoração da taxa de juros, em vez de reduzir a inflação, provoca seu aumento.

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