As perdas da Lei Kandir
O ressarcimento das chamadas “perdas” da Lei Kandir nunca me convenceram, principalmente porque não há como calculá-las, porque as exportações aumentaram em função dela. Se as exportações não aumentaram, então a lei foi inútil e deveria ser revogada.
Mas esse não foi o entendimento dos governantes em 2003, quando em vez de propor sua revogação, propuseram e aprovaram a constitucionalização de seus postulados.
As exportações não geram arrecadação diretamente, mas aumentam a renda interna e propiciam maior consumo, gerando mais tributos.
Houve alguma perda aos Estados, mas hoje elas não existem mais. Apesar das inúmeras opiniões em contrário de amigos e técnicos especializados do Estado, para mim, as “perdas” da Lei Kandir não passam de uma miragem, como tantas outras que dominam o Estado, conforme muito bem destacado pela jornalista Rosane de Oliveira, na Zero Hora de hoje (21/02/2017).
Sobre esse assunto, transcrevo o que consta do livro “O Rio Grande em saída?”, p. 170/175, que foi baseado em texto do economista Ricardo Varsano, sob o título Fazendo e Desfazendo a Lei Kandir, BID, 2013.
5.3.1. As “perdas” da Lei Kandir
Esse é um assunto de que muito se fala e é controvertido. Por isso, reservamos um espaço maior para tratar dele, sem, contudo, analisar todas suas nuanças.
A denominada Lei Kandir, Lei Complementar n° 87/1996, é a lei complementar que regula o art. 155, § 2º da Constituição, que trata do Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (ICMS), mas não é conhecida por isso e sim pelas perdas que causou ou teria causado à arrecadação dos estados e municípios.
A Constituição de 1998 introduziu diversas alterações no então ICM, aumentando sua base, ao incluir combustíveis, lubrificantes, energia elétrica, minerais e serviços de transportes interestadual e intermunicipal de comunicação, todos antes sujeitos a tributos federais que foram extintos. Em decorrência dessas alterações à sigla do imposto foi acrescido um “S”, passando a ser ICMS.
Apesar desse aumento de base, mesmo que o ICMS tenha beneficiado com a não incidência os produtos industrializados exportados, deixou de fora os produtos semielaborados. Isso o descaracterizava como um IVA (imposto sobre valor adicionado) adotado nos demais países do mundo. Essa modificação foi introduzida pela Lei Kandir, o que, aliás, já estava previsto na Constituição de 1988.
Apesar de todas as críticas à lei em causa, nunca houve uma proposta tendente a revogá-la. Pelo contrário, a Emenda Constitucional nº 42/2003 acabou constitucionalizando seus postulados.
Na Constituição de 1988, artigo 155, inciso X, letra “a”, referindo-se ao ICMS, anteriormente, assim estabelecia:
“O imposto “não incidirá sobre as operações que destinem ao exterior produtos industrializados, excluídos os semi-elaborados definidos em lei complementar”.
A Emenda Constitucional citada alterou a redação da letra “a” do inciso X, que passou a dispor da seguinte maneira:
“O imposto não incidirá sobre operações que destinem mercadorias ao exterior, assegurada a manutenção e o aproveitamento do montante do imposto cobrado nas operações e prestações anteriores”.
A nova disposição constitucional aumentou a abrangência da isenção, porque esse é o sentido da palavra mercadorias e, ainda, deixou explícito o direito das empresas exportadoras de se ressarcirem do imposto pago na compra da matéria-prima, o que antes existia, mas não era expresso.
Ao invés de compensar as perdas temporárias, A Lei Kandir resolveu suavizá-las estabelecendo o seguro receita que seria entregue aos estados numa quantia calculada segundo critérios definidos em seu anexo, da qual 25% seriam distribuídos aos municípios.
Segundo Varsano (2013), as transferências não eram para compensar os estados pelas perdas que sofreriam por deixar de tributar as exportações de produtos primários, semielaborados, bens de capital e bens de consumo. Há duas razões para isso, sendo uma de ordem prática e outra de ordem econômica. A primeira decorria da dificuldade de quantificar as perdas, e a segunda do fato de os IVAs do mundo não tributarem esses produtos.
Segundo o mesmo autor, até 2000, enquanto durou o seguro-receita, a Lei Kandir não impediu que a arrecadação real dos estados crescesse. Na média do período 1997-2000, em relação a 1996, o crescimento real do ICMS no País foi de 7,4% e 12,1%, quando acrescida do seguro-receita. No caso do RS, esses números foram bem menores, mas positivos: 1,3% e 8,1%, respectivamente. Os percentuais citados constam da Tabela 5 do trabalho referido.
A Lei Complementar n° 102/2000 não eliminou o seguro-receita, mas suspendeu sua aplicação entre 2000 e 2002, determinando a distribuição de valores fixos, sendo que para 2000 seriam descontados os valores já distribuídos pelo seguro-receita.
A Lei Complementar n° 115/2002 eliminou o seguro-receita sem, contudo, perpetuar as compensações. Determinou que em 2003 fossem distribuídos aos estados R$ 3.900 milhões. E nos exercícios 2004 a 2006, seriam repassados os valores que fossem consignados no orçamento da União.
Por fim, a Emenda Constitucional n° 42 de 2003, ao mesmo tempo em que elevou ao nível constitucional as disposições da Lei Kandir, conforme referido, praticamente perpetuou as entregas de recursos aos estados, no artigo 91 das disposições transitórias.
Esse artigo determina que a União entregue aos estados o montante definido em lei complementar, de acordo com critérios, prazos e condições nele determinados, podendo considerar as exportações para o exterior de produtos primários e semielaborados, a relação entre as exportações e as importações, os créditos decorrentes de aquisições ao ativo permanente e a efetiva manutenção e aproveitamento do crédito do imposto antes citado. Consta também do mesmo art. 91 das DCT que enquanto não for editada nova lei complementar, permanecerá vigente o sistema estabelecido na Lei Complementar nº 115/2002. Essa lei até o final de 2012 não havia sido editada. Em função disso, são distribuídos valores nominais fixos.
No entanto, o parágrafo 2° do artigo 91 estabelece uma transitoriedade nessa distribuição, estabelecendo que a entrega dos recursos perdure até que o ICMS tenha o produto de sua arrecadação destinado em proporção não inferior a 80% ao estado onde ocorrer o consumo das mercadorias, bens e serviços (Ver Box).
Segundo o autor citado, 20 estados já preenchem essa condição. Só não preenchiam essas condições em 2011 Acre, Distrito Federal, Maranhão, Piauí, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte (Tabela 7 do trabalho citado).
Ainda, segundo o autor, o texto em questão é dúbio. Uma possível interpretação é que a condição para a cessação da entrega de recursos deve ser aplicado estado a estado. Nesse caso, apenas os estados onde essa condição não foi satisfeita deveriam continuar a receber os recursos. Outra interpretação é que os recursos devem continuar a ser entregues a todos os estados até que a condição seja satisfeita em todos eles. Se é que isso não aconteceu em 2012, certamente acontecerá caso haja a pretendida redução das alíquotas aplicáveis às operações interestaduais.
Diante do exposto, parece que os ressarcimentos da Lei Kandir estão com os dias contados, até porque nada garante que as perdas aludidas, que existiram no curto prazo, continuem a existir. A arrecadação real cresceu, para o que as alterações trazidas pela Lei Kandir deve ter contribuído ao incentivar as exportações, aumentando a renda interna e possibilitando mais importação, sobre o que incide ICMS. Por outro lado, o cálculo das perdas tomam como base as exportações que, certamente, teriam um valor bem menor não fosse a lei em causa.
A partir de 2004, a União passou a fazer também transferências voluntárias aos estados a título de fomento às exportações, de cujo valor é destinado 25% aos municípios. Elas foram mais ou menos crescentes até 2008, quando alcançaram R$ 3.251 milhões no País, tendo sido fixadas em R$ 1.950 milhões, de 2009 até 2012, em valores nominais. No RS essas transferências foram mais ou menos crescentes até 2008, decrescendo após, para alcançar em 2012 menos de 45% do valor transferido no ano 2008, zerando em 2013.
As transferências decorrentes da Lei Kandir foram decrescentes ao longo do período 1998-2012, quando, em termos reais, atingiu percentual pouco superior a 20% (Tabela 5.4).
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Se a redução das transferências da Lei Kandir pode ser explicada pelas razões citadas, o mesmo não pode ser dito das transferências de fomento às exportações, que nada justifica sua redução e total eliminação , a não ser a contenção de despesa por parte do Governo Federal.
BOX
O que é tributar de acordo com o princípio de destino